“A minha revolta com a escala 6×1 era para ser apenas um desabafo na rede social, mas tomou uma proporção surreal. Hoje tenho uma missão – defender por mais vida além do trabalho,” diz Rick Azevedo, defensor do movimento VAT (Vida Além do Trabalho) e ex-balconista de farmácia.
O Movimento VAT, que quer acabar com a escala 6X1 surgiu no Tik Tok no final do ano passado, trazendo muitos apoiadores, assim como muitos haters. Neste ano, Rick diz que o movimento deve ganhar proporções ainda maiores.
Especialistas explicam que esse é um dos movimentos que lutam por uma nova escala de trabalho. Tanto no Brasil quanto em outros países, a escala 4×3 que Rick defende já está sendo testada. Além disso, o movimento que ganhou destaque por causa de uma rede social tem relações com outras tendências que surgiram no mercado de trabalho internacional.
Como o Movimento VAT começou?
Nascido em Tocantins e morador do Rio de Janeiro há 10 anos, Rick aos 30 anos estava cansado da escala 6×1 que o trabalho de balconista de farmácia lhe proporcionava. Em paralelo, também conciliava os trabalhos de influencer no Tik Tok onde comentava as novidades do mundo pop – mas nenhuma live repercutiu tanto quanto o vídeo que ele publicou no dia 13 de setembro de 2023.
“Era uma segunda-feira quando eu estava de folga e decidi gravar um vídeo. Era o único dia que eu tinha de descanso em uma semana. Era o único dia em que eu poderia marcar um médico, arrumar a casa ou ir à praia. Eu já estava inconformado com essa escala desumana de 6×1 em pleno período que vigora o CLT, quando a minha coordenadora me ligou e me estimulou ainda mais a desabafar.”
Na ligação a coordenadora pediu para Rick entrar mais cedo no dia seguinte – a mudança de horário encurtou o seu único dia de folga. “Costumava entrar às 14h30, ou seja, contava com o descanso da manhã seguinte, que me foi tirado também,” diz Rick.
O vídeo foi publicado no dia 13 de setembro na parte da manhã, enquanto Rick ia ao trabalho. Com o celular desligado durante o expediente, o balconista só se deu conta da repercussão que o seu vídeo tomou na internet quando ligou o celular e viu milhares de mensagens chegando. “Vi notificações por todo o lado. Muita gente repercutindo e dizendo que a escala 6×1 é um absurdo, inclusive muitos advogados.”
Os próximos passos
A repercussão era o que Rick precisava para ir mais além com o tema. Criou um WhatsApp para articular ações com os apoiadores, enquanto ainda trabalhava na farmácia. Em menos de uma semana, o grupo que recebia até 2 mil pessoas lotou. “Foi aí que decidi fazer grupos por estado, para articular ações com pessoas de cada região”
O nome do movimento foi criado junto com esses apoiadores. Entre várias sugestões, a sigla “VAT (Vida Além do Trabalho)” trouxe a definição do que ele defendia no vídeo e o que o perturbava atrás do balcão todos os dias. “A mensagem que eu quero passar é que as pessoas precisam viver além do trabalho e o nome chegou para identificar a causa.”
Com o nome definido, Rick buscou orientação com especialistas para os próximos passos. “Cheguei no meu amigo que é advogado e disse: Precisamos retirar a escala 6×1 do CLT. Como posso notificar as autoridades?”.
Foi neste momento que João Victor Félix, o amigo advogado que hoje faz parte da equipe jurídica do movimento, teve a ideia do abaixo-assinado, que ao ser lançado nas redes sociais recebeu só na primeira semana 50 mil assinaturas – hoje já soma mais de 550 mil assinaturas. “Pensei que conseguiria umas 100 mil assinaturas, mas novamente a proporção foi muito maior e isso mostra que realmente há muitas pessoas sofrendo com esse regime.”
A ida para as ruas
Com o movimento ganhando fama e até apoio do deputado Glauber Braga (PSOL-RJ), o clima no trabalho de Rick não ficou tão agradável e ele acabou saindo. “Eu pedi para sair, porque na verdade houve uma pressão.”
Após o sucesso da petição e das redes sociais, Rick foi para as ruas e elaborou atos de panfletagens. “Ainda não temos força para ir para a Paulista, mas saí do Rio e fui nos principais centros do estado de São Paulo, como a praça da Sé, para avisar os varejistas sobre o movimento.”
“O setor do varejo é um dos setores que sustenta o Brasil e na pandemia foi provado isso. Não paramos o posto de gasolina, a farmácia, o mercadinho…por que essas pessoas não merecem uma escala justa de trabalho?”.
Além de São Paulo, junto com apoiadores, Rick fez atos em outros estado, como na Central do Brasil, no RJ, e passou também por universidades, como a Universidade Federal Fluminense (RJ) e a Universidade Federal do Ceará.
“Entre os próximos destinos está viabilizar ainda este ano um grande ato na Paulista e na Praça dos 3 Poderes”, afirma Rick.
Sobre ataques
Empresários que são contra o fim da escala 6×1 já chegaram a atacar Rick nas redes sociais. “Eles acham que é uma afronta, eu vejo como uma qualidade de vida, até para que o funcionário tenha mais produtividade.”
Mesmo com os ataques, o líder do movimento afirma que em 2024 será um ano de muita novidade para o movimento e que o próximo passo é viabilizar um debate em Brasília. “Vamos exigir que o Ministério do Trabalho e o Congresso escute essas mais de 500 mil pessoas que assinaram a petição.”
O excesso de trabalho está resultando em profissionais doentes, reforça Rick, que relembra que burnout, transtornos depressivos e de ansiedade entraram no último ano na Lista de Doenças Relacionadas ao Trabalho (LDRT).
“Não é que a gente não quer trabalhar, a gente só quer ter uma vida além do trabalho, e a geração passada foi ensinada a anular a sua vida para uma escala escravagista, que tira a dignidade do trabalhador brasileiro.”
A proposta do Movimento VAT
O que Rick defende por meio do Movimento VAT é uma escala 4×3 (trabalha 4 dias e folga 3) que já está sendo testada em vários países, inclusive no Brasil.
Para Roberta Rosenburg, CEO e co-fundadora F.Lead, consultoria de desenvolvimento de pessoas, a escala 4×3 pode não ser a ideal para o momento. “Felizmente, hoje, falamos muito sobre sanidade mental no trabalho, mas acredito que a escala 4×3 não seja o caminho ideal para as empresas e tampouco para funcionários. Uma escala 5X2 seria a melhor opção e mais fácil de ser absorvida.”
A origem do trabalho 4×3
Este movimento, impulsionado pelas redes sociais, tem raízes prévias na Europa, onde discussões sobre a implementação de uma jornada de trabalho de quatro dias, sem redução salarial, já ocorrem há algum tempo, afirma Kalyani Madhusudanan, sócia da NAGY, consultoria de Recursos Humanos.
“Entre 2015 e 2019, a Islândia liderou o maior projeto piloto global, experimentando uma semana de trabalho de 35 a 36 horas, sem impacto nos salários tradicionais de 40 horas. O diálogo ganhou maior ímpeto durante a pandemia da COVID-19, com trabalhadores e empregadores reconsiderando modelos laborais.”
Países como Bélgica, Reino Unido e Suécia já adotam essa prática, trazendo benefícios que incluem mais tempo para lazer, cultura, qualificação e, crucialmente, melhorias na saúde mental dos trabalhadores, que enfrentam desafios crescentes como depressão, distúrbios do sono e burnout.
No Brasil, a oportunidade de testar esse novo formato chegou em 2023 e segue em teste neste ano. Segundo Renata Rivetti, fundadora da Reconnect, empresa que trouxe o piloto da semana de 4 dias ao Brasil, são 22 companhias que estão no piloto no país. “No geral são pequenas e médias empresas , com 280 participantes de 5 estados. Essas empresas buscam fazer o piloto por dois grandes motivos: melhorar a qualidade de vida dos funcionários junto com a produtividade.”
A redução da jornada de trabalho no Brasil
No âmbito sindical, não é de hoje que as entidades sindicais reivindicam a redução da jornada semanal, afirma Rodrigo Chagas Soares, sócio do escritório Granadeiro Guimarães Advogados. “No ano de 2009, as Centrais Sindicais já defendiam com a aprovação de uma Proposta de Emenda Constitucional datada de outubro de 1995 (PEC 231/95), reivindicando a redução da jornada de trabalho de 44h semanais para 40h por semana.”
Atualmente, o advogado reforça que se discute uma redução ainda maior, em que entra a jornada de trabalho 4×3. “Das, então, 40h semanais passou-se a pedir a redução da jornada para 32 horas na semana, muito embora não se trate de uma reivindicação dos sindicatos, mas da sociedade civil.”
Neste cenário, o Movimento VAT entra como uma pauta da sociedade civil e não como uma bandeira exclusiva de um movimento sindical. “Essa pauta da sociedade civil vai ao encontro do posicionamento defendido pelo Ministro do Trabalho, Luiz Marinho, que no final de 2023 defendeu uma proposta de redução para 32 horas na semana de 7 dias, a conhecida semana de 4 dias de trabalho”, diz Soares.
Para o empresariado, o advogado afirma que a redução impactará, dentre outros pontos, no quadro de funcionários, sendo necessária a contratação de mais empregados para suprir a demanda do mercado e, via de consequência, elevando o custo das empresas.
Além do possível aumento no quadro de funcionários, o presidente da ACSP (Associação Comercial de São Paulo), Roberto Mateus Ordine, diz que a proposta do VAT valeria para um país que possui uma economia mais estável.
“No caso do Brasil, a nossa economia não é muito sólida para exercer um trabalho 4×3, uma vez que os encargos trabalhistas que temos no Brasil são muito maiores que muitos países.”
O executivo da ACSP afirma que para adotar esse sistema, teríamos que ter certeza que os custos das mercadorias seriam muito maiores do que são atualmente, tendo em vista que o número de funcionários deveria crescer, assim como o número de horas pagas. “Paralelamente a esses os custos diretos com os funcionários, temos os encargos sociais, que ultrapassam 102%. Evidentemente que com essa escala defendida pelo VAT seria muito difícil mantermos o custo operacional no Brasil.”
“Evidentemente que, para um futuro, o número de horas trabalhadas será menor, mas essa proposta atual para o nosso sistema ainda é muito difícil. Por isso acredito que no momento esse tipo de proposta poderia ser usada para um estudo e não em um movimento”, afirma Ordine.
O VAT como mais uma tendência do mercado
Assim como o VAT (Vida Além do Trabalho) outros movimentos surgiram questionando as condições atuais do trabalho, com a pandemia sendo a linha de partida para muitas tendências. “O impacto da pandemia trouxe a reorganização e o reposicionamento de valores individuais e sociais no mercado de trabalho, afinal mostrou a fragilidade da vida e trouxe para muitos a reflexão e a necessidade de ter mais tempo para viver, além de trabalhar”, afirma Andrea Deis, especialista em carreira e neurociência há mais de 20 anos e professora autônoma da FGV, Mackenzie, FIA e Dom Cabral.
Foi neste período de crise sanitária global que surgiram movimentos como a “grande renúncia” nos EUA, em que milhares de funcionários deixaram seus empregos em 2021. Esse movimento chegou no Brasil e desencadeou outras tendências no mercado de trabalho, como o “quiet quitting” em 2022, que ficou conhecido no Tik Tok por vídeos de profissionais americanos que defendiam limites bem estabelecidos entre trabalho e vida pessoal, correspondendo às obrigações, mas não fazendo mais ou menos do que o acordado no contrato.
Em 2023 aparece também no Tik Tok o “Lazy Job”, que em tradução literal significa “trabalho preguiçoso”. Trata-se de uma tendência de mercado que busca por trabalhos menos estressantes, remotos e bem remunerados.
“Todos esses movimentos estão buscando por melhores condições de trabalho e adequações às novas gerações que buscam por mais equilíbrio entre vida e a profissão”, afirma Deis.
Para a professora especialista em carreira esses movimentos conversam entre em si porque todos estão questionando as formas tradicionais que estão se arrastando ao longo de décadas, e que deveriam ser revisto de acordo com o desenvolvimento do ser humano e das tecnologias que estão proporcionando novas formas de trabalho e de comunicação.
“O ser humano é feito de história e de evolução, e com essa evolução surgem novas necessidades. O que diferencia a máquina do homem é a capacidade criativa e sensitiva, enquanto o ser o humano tem esse diferencial, ele tem outras necessidades de evolução. Hoje as necessidades são alertadas aos gritos pela nova geração, que dá um espaço de voz para que outras gerações se posicionem e avaliem suas prioridades.”
Procuramos o Sebrae Nacional (Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas) e a CNI (Confederação Nacional da Indústria), que ainda não se posicionaram sobre o tema. O espaço segue aberto.
Matéria reproduzida, ver original aqui
assine aqui a petição VAT