A uberização é muito mais do que a lógica que rege o trabalho em aplicativos, de onde cerca de 1,7 milhão de pessoas tiram a renda no Brasil, segundo o Ipea. Como uma “nova forma de controle, gerenciamento e organização do trabalho”, o modelo impacta todas as profissões e os próprios modos de vida contemporâneos. É o que constata Ludmila Abílio, pesquisadora do Instituto de Estudos Avançados da USP e do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho.
Se a dinâmica que faz com que trabalhadores fiquem disponíveis e sejam recrutados só de acordo com a demanda já está em curso há décadas, as plataformas digitais trouxeram uma novidade. Com a gestão do trabalho por meio de algoritmos, conseguem fazer com que a necessidade do trabalhador se engajar permanentemente para “se manter no jogo” produza dados que tornam o gerenciamento daquela força de trabalho cada vez mais eficaz.
No caso dos entregadores, esse “jogo” acontece em um contexto em que as regras – para eles, não para as empresas – são propositalmente nebulosas. O quanto vão ser pagos por corrida, o que faz com que pedidos toquem ou deixem de tocar, qual o motivo do bloqueio no app são exemplos disso – não à toa, sempre aparecem nas demandas de suas greves.
“O trabalhador tenta lidar com essas regras o tempo inteiro, mas ele não tem nenhum poder de negociação, influência e nem de conhecimento sobre o que rege o próprio trabalho dele, então é um exercício permanente de adivinhação”, descreve Abílio.
Se o mundo do trabalho carrega essas entre suas características contemporâneas, as lutas dos trabalhadores de aplicativo também envolvem novas lógicas. Entre elas, na visão de Abílio, que é também professora colaboradora da Sociologia da Unicamp, a organização dispersa, em rede. “Tem a ver com ser multidão”, sintetiza. “E tem uma potência enorme: os motoboys têm um poder quase como o dos caminhoneiros. Eles podem interromper os fluxos”, afirma.
Confira a conversa na íntegra:
Brasil de Fato: Você fala da uberização como a forma contemporânea de subordinação e gerenciamento do trabalho e, ao mesmo tempo, chama a atenção que ela não se reduz ao trabalho em plataformas, que tem a ver também com modos de vida. O que é a uberização?
Ludmila Abílio: A uberização é uma nova forma de controle, gerenciamento e organização do trabalho. Isso envolve uma série de elementos que dizem respeito a como nós, socialmente, estamos sobrevivendo. Como estamos sendo remunerados, as noções de justiça, de dignidade, de saúde, de segurança, como elas estão se organizando nesse dado momento histórico.
A uberização tem alguns elementos centrais. O primeiro é a transformação das pessoas em trabalhadores sob demanda. Podemos usar um termo que é o trabalho just in time, que tem a ver com o toyotismo, quando falavam na produção just in time, uma grande transformação que vemos mais fortemente a partir dos anos 1970. É quando a produção é organizada de acordo com a demanda, eliminando uma série de riscos e custos, como estoques. Uma coisa é produzir um monte de carros e ter que vendê-los, outra é produzir o carro quando ele já está vendido. É como o Marx já falava n’O Capital: o ideal do capitalista é uma fábrica que funcione sob encomenda. Isso é uma produção just in time.
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Então olha a complexidade e perversidade de falar num trabalhador just in time. Ele vive na mesma racionalidade que organiza a produção – só que ele é um ser humano. Então, ele passa a ser um fator de produção que é recrutado e usado quando necessário. Isso quer dizer que grande parte dos riscos e custos que envolvem o trabalho dele, são transferidos para ele próprio.
E aí as plataformas digitais têm um papel importante nisso, porque trazem novos meios tecnológicos e políticos desse gerenciamento. Então, qual é a grande novidade aí? Muita gente já vive sob demanda há muito tempo no Brasil. Mas passamos a ter uma racionalização e uma centralização desse controle. Temos 1 milhão de entregadores, 1 milhão de motoboys, 1 milhão de motoristas subordinados e controlados de forma extremamente eficiente e racionalizada por essas empresas.
O segundo elemento da uberização se refere à informalização. É tornar o trabalhador formal em informal, mas é mais do que isso. Também é um processo em curso há décadas e nós que estamos em home office sabemos do que se trata. É quando as distinções entre o que é tempo de trabalho, o que não é, o que é local de trabalho, o que não é, o que são custos do trabalho, o que não são, se informalizam. Isso também se traduz em uma série de transferências de custos para nós trabalhadores, e também de extensão do nosso tempo e intensificação do nosso trabalho, numa polivalência em que a gente vai combinando um monte de coisas ao mesmo tempo, inclusive coisas da nossa vida reprodutiva.
No caso dos entregadores, essa informalização envolve a perda de clareza mesmo das regras que regem o mundo trabalho. Mas todas as regras. Que chegam até na forma como o trabalho é precificado, como é distribuído para o trabalhador, por que o trabalhador é bloqueado, por que ele é beneficiado. O trabalhador não sabe mais quais são as regras do jogo.
E parece que a mediação é sempre com sistemas, máquinas, algoritmos, não é?
Por meio dessas plataformas, de fato, a gente vê o que chamamos de gerenciamento algorítmico do trabalho. Ele é criado por meios, determinações e critérios humanos. Mas o gerenciamento algorítmico possibilita transformar em dados uma série de elementos do mundo social, que vão sendo combinados para usar aquela força de trabalho sob demanda de forma mais eficaz. O trabalhador tenta lidar com essas regras o tempo inteiro, mas ele não tem nenhum poder de negociação, influência e nem de conhecimento sobre o que rege o próprio trabalho dele, então é um exercício permanente de adivinhação.
Por fim, tudo isso envolve também uma transformação – que não é uma superação. Não é que o Charlie Chaplin desapareceu, aquele modelo disciplinar de um corpo que tem que ser controlado e vigiado externamente, se não ele escapa. Que é o modelo fordista e taylorista, né? Ele continua, mas se combinou com novas formas de gestão do trabalho que transferiu para nós o gerenciamento do trabalho de forma subordinada.
De novo, a figura do home office. Eu sou muito mais produtiva aqui na minha casa, cozinhando, fazendo mil trabalhos, respondendo e-mails, etc., do que se eu estiver num escritório com o gerente me observando. É uma transferência de gerenciamento, mas eu sou mais produtiva porque estou num contexto de desemprego, ameaça e concorrência permanente. Então é demandar de mim um engajamento permanente para eu me manter no jogo.
E essa gestão de si, que a gente vai chamar de empreendedorismo de si, na verdade, é assim: você é um trabalhador em que as garantias conquistadas a duras penas, e que se referiam à responsabilização do Estado e do capital sobre a sua vida, se esfumaçaram. E você agora é um empreendedor de si, porque você passa a ser inteiramente responsável pela gestão da sua sobrevivência. E, para o lado da empresa e até do próprio Estado, você se torna uma pura força de trabalho. Então, há uma dissociação de algo que move a relação capital e trabalho, né? E é uma luta histórica a de que o trabalhador não é só força de trabalho, ele é um ser humano. É como se essa dissociação finalmente fosse feita. Por um lado, você é força de trabalho e, por outro, na sua vida, você é um ser humano – se vire para viver como tal.
Como você vê o debate da regulamentação do trabalho em apps?
É complexo e perigoso. A reforma trabalhista reconfigurou a definição histórica e muito bem constituída do que é emprego formal. Mudou o que é considerado o tempo de trabalho. Por exemplo, o tempo que ele anda dentro da fábrica até o posto dele não é mais considerado tempo de jornada de trabalho. Isso parece um detalhe, mas é muito sério, pois estamos reconfigurando a ideia do que é a jornada de trabalho e quem arca com isso.
Os poros do trabalho são aqueles períodos em que o trabalhador está sendo remunerado, que conta como tempo de trabalho, mas que ele não produz. Há uma luta enorme do capital para eliminar esses poros do trabalho e a reforma trabalhista já olha para isso, por dentro da regulação do trabalho formal.
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É preciso perceber que o que aparentemente é a discussão da regulação do trabalho de entregadores se trata, na realidade, da regulação da uberização.
Surge um projeto da deputada Tabata Amaral (PSB), chamado “regime de trabalho sob demanda”. Dava nome aos bois. Quase emplacou e parte da esquerda abraçou. E ele fazia essa distinção: o trabalhador teria alguns direitos sociais, mas só seria remunerado pelo tempo efetivo de produção.
Estamos em um campo um pouco minado, porque as empresas têm um lobby fortíssimo e estão muito bem articuladas. E temos também um elemento que não podemos desprezar. Os trabalhadores – apesar de trabalhar 6, 7 dias por semana, mais de 12h por dia – prezam muito a gestão do próprio tempo. Todos nós prezamos. E parte da rejeição de muitos à CLT está relacionada a isso. Não querem voltar à figura que regula e vigia a jornada. Então tudo isso está em questão.
É um momento propicio, importante para se discutir a CLT, o trabalho intermitente, se é necessário pensar em novos modelos, se podemos nos basear em modelos existentes – tudo isso está em disputa. E a gente tem que ter muito cuidado para que o resultado disso não seja uma multidão de trabalhadores MEIs. Ou uma multidão de trabalhadores intermitentes. Que vão seguir sendo ferrenhamente subordinados.
O que te chama mais a atenção nas lutas de trabalhadores de aplicativo no Brasil?
Se você é uberizado e se organiza politicamente, o dia que você faz greve, você não recebe nada. E as empresas ainda vão dar uma série de incentivos para que os outros trabalhem. Então, agir politicamente nessa história demanda muita coisa. É a sua sobrevivência, da sua família. Você é bloqueado, é desligado.
E a gente viu com o breque dos apps, claro, surgiram lideranças, depois os sindicatos aparecem, mas nós sabemos que a organização desse movimento também envolve novas lógicas, que têm a ver com esse formato de rede. Tem a ver com ser multidão. A organização é dispersa. E tem uma potência enorme porque, veja, os motoboys têm um poder quase como o dos caminhoneiros. Eles podem interromper os fluxos.
E as formas de manifestação deles também se apropriaram desses elementos. Então, não é só fazer ato com motocicletas pela Avenida Paulista. É desligar o aplicativo, é incentivar o consumidor a se engajar também, avaliar mal, são novos instrumentos que entram aí. É bloquear os pontos onde as mercadorias saem para circular.
Mas ao mesmo tempo também esse efeito muito duro, porque a gente não sabe, na prática, quais foram as conquistas que esses trabalhadores conseguiram até agora. A gente vem de décadas de ataques muito poderosos às forças sociais do trabalho. E eles estão no meio desse turbilhão. Mas é uma construção que está em ato, a gente está vendo ela acontecer. Para onde ela vai? Isso não está dado.