A terceirização na saúde não é um fenômeno recente, vem de longa data, especialmente junto com o processo das privatizações. No entanto, seus efeitos nefastos ganham cada vez mais destaque, especialmente em tempos de pandemia.
Para entender melhor este fenômeno o Observatório dos Trabalhadores Terceirizados (OTTS) entrevistou Heloísa Pereira (H.P), representante do SindSaúde SC, que tratou de temas diversos como a terceirização na saúde e seus impactos, fenômenos como pejotização e quarteização, impactos da privatização e do teto de gastos na saúde e desafios de organização dos trabalhadores terceirizados.
OTTS – Olá Heloísa, é um prazer tê-la conosco no OTTS. Quando falamos de terceirização na saúde, é comum que ela esteja imbricada com o processo de privatização e da proliferação das OS’s, que são as organizações sociais sem fins lucrativos. Fale-nos mais sobre isso?
H.P – Na saúde temos visto e analisado que os processos de terceirização e de privatização se confundem. Isso porque, por princípio, a privatização dos serviços de saúde se dá através da contratação de entidades de caráter privado para gerir o serviço, que por sua vez vai contratar trabalhadores e trabalhadoras diretamente através da CLT, já em vínculo mais precário que os servidores públicos que estavam naquela unidade antes e ainda vai passar a quarteirizar serviços específicos.
Trata-se, portanto, da terceirização do serviço como um todo! Desde a reforma de estado do Governo FHC a saúde passou a ser considerada um “serviço não exclusivo do Estado” e, ao invés do Estado prestar o serviço de saúde em sua integralidade, passou a delegar a execução desses serviços. É nessa toada que surgem os chamados “novos modelos de gestão”, que nada mais são do que formas “disfarçadas” de privatização. As portas se abrem então para a terceirização dos serviços e da gestão. Este é o caso das “Organizações Sociais” (OSs) e Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIPs), entidades privadas supostamente sem fins lucrativos, mas que firmam contratos com o ente público e recebem recursos do SUS para oferecer serviços que são de responsabilidade dos Governos Federal, Estadual ou Municipal. E friso a expressão “supostamente sem fins lucrativos” porque com um pouco de esforço e tempo de análise dos vários contratos firmados entre Organizações Sociais e os entes públicos, é fácil identificar as “taxas de administração” ou termos semelhantes que constam em cada contrato.
Esses contratos estabelecem metas a serem cumpridas que, em geral, são remuneradas por quantidades de atendimentos realizados. Na saúde há toda uma complexidade de elementos que poderiam ser pensados em torno disso e nos impactos que o cumprimento de metas quantitativas têm sobre a qualidade do atendimento. Os contratos costumam prever um número x de altas hospitalares, um número y de exames de cada tipo, um número z de atendimento de emergência e por aí vai… e a OS é remunerada por esse quantitativo previsto no contrato. Há de se imaginar o impacto que isso pode ter sobre o atendimento do paciente, se eventualmente a OS identificar que já cumpriu suas metas naquele mês e que não receberá nada a mais por atendimentos para além do estipulado em contrato. Ou qual o impacto para o paciente, se a OS identificar que ainda não cumpriu a meta mínima de altas hospitalares naquele mês e se não cumprir não receberá integralmente o valor do contrato.
Há um elemento adicional ainda sobre esses processos de terceirização e privatização que é a rotatividade e abandono de contratos pelas organizações gestoras. A cada troca de gestão, seja por rompimento de contrato já previsto mas especialmente em situações de abandono de contrato (que não são incomuns) por parte das entidades privadas, há um contingente de trabalhadores e trabalhadoras que ficam à mercê da sorte e do judiciário em ver seus direitos básicos garantidos. E as novas contratações pela organização social que assume os serviços, não raro, se dão em patamares salariais e de direitos ainda piores que o contrato anterior.
É, portanto, um modelo que abocanha significativa parcela dos investimentos públicos em saúde de cada região, precariza os serviços aos usuários e aprofunda a precarização do trabalho.
OTTS – A Lei 13.429 de 2017 liberou a terceirização irrestrita, seguida pelo julgamento no STF da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 324 e o Recurso Extraordinário (RE) 958252 no ano de 2018 em que sete ministros votaram a favor da terceirização da atividade fim e quatro contra, dando repercussão geral para o tema. Qual o impacto da terceirização irrestrita na saúde?
H.P – Certamente que o dano causado pela terceirização acontece em todas as áreas pela própria essência da terceirização, que passa pela intermediação da contratação de trabalhadores e trabalhadoras gerando precarização dos contratos e dos serviços. Na saúde, por se tratar de uma área sensível e que exige contínua qualificação, especialmente nas chamadas “atividade fim”, os danos podem ser ainda mais duros.
Embora a terceirização da atividade fim tenha se acelerado muito em diversas atividades, na saúde também cresce mas me parece que num ritmo mais lento ou talvez num ritmo diferente. A complexidade que envolve o setor e uma série de atividades que exigem formação específica facilitam o formato de cooperativas e a pejotização.
OTTS – Quando falamos de terceirização, é comum pensarmos na figura do faxineiro, do porteiro, do segurança que são profissionais tipicamente identificados com a terceirização. Quais os impactos da terceirização destas atividades na saúde?
Sim, a terceirização “tradicional” passa pelas atividades que são comumente tratadas como atividades meio, quais sejam serviços de limpeza, segurança, cozinha, etc… Pode-se inclusive debater essa ideia de “atividade meio” e a importância para garantia de um bom atendimento em saúde de profissionais que não são vistos, muitas vezes, como trabalhadores e trabalhadoras da saúde. Como garantir um procedimento cirúrgico sem uma equipe de higienização do ambiente bem formada e capacitada? E como garantir a alimentação adequada às especificidades de cada paciente se o pessoal de cozinha não estiver alinhado e treinado a realidade do trabalho em uma unidade de saúde?
OTTS – Além da terceirização, tem também o fenômeno da pejotização e da quarterização. Fale-nos mais sobre eles? E em que medida eles se verificam na saúde?
H.P – A pejotização e quarterização dos serviços e contratações tem crescido, especialmente entre profissões específicas e típicas da saúde. Profissionais médicos através de PJ ou reunidos em cooperativas, ou ainda pejotização de serviços de imagem com equipes completas de técnicos em radiologia são exemplos que têm se tornado mais frequentes.
São trabalhadores e trabalhadoras que perdem o vínculo formal de trabalho que tinham até então, embora permaneçam realizando as mesmas atividades, e passam a ser contratados por entidades de direito privado que atuam no serviço público ou mesmo diretamente dentro de empresas privadas.
E mais do que o vínculo formal de trabalho, essas pessoas costumam perder a identidade de trabalhador e trabalhadora, e passam a se perceber como “prestadores de serviço”. Não se trata apenas de uma investida contra a situação de cada trabalhador individualmente, mas uma investida ideológica contra a classe trabalhadora que, embora seja cada vez maior, não se identifica enquanto tal.
OTTS – No ano de 2016 foi aprovado pelo governo Temer a chamada “PEC do teto de gastos”, que limitou o crescimento dos gastos em serviços essenciais como saúde e educação por 20 anos. Como os impactos do teto de gastos tem se manifestado na saúde?
H.P – A Emenda Constitucional 95, que estabeleceu o teto dos gastos a partir da sua aprovação em 2016, tem retirado alguns milhões de reais em investimento em saúde nesses últimos anos. Só em 2019, levantamento feito pelo Conselho Nacional de Saúde apontou que a saúde perdeu 20 bilhões em investimentos por conta da EC 95. (ver aqui)
A pandemia em 2020 evidenciou a catástrofe que essa EC significa, porque pelas regras da EC seria impossível fazer qualquer investimento adicional em saúde para enfrentamento da pandemia. A saída, na nossa avaliação, passa pela revogação da EC 95, mas o que acabou acontecendo foi a aprovação de um orçamento emergencial, que pôde driblar as amarras da EC.
A contradição dessa alternativa de “orçamento emergencial” fica evidente se compararmos a situação de saúde e educação. A saúde que precisou de um orçamento muito maior do que em anos anteriores só o pode acessar através desse orçamento emergencial, enquanto que a educação que teve uma redução de gastos em virtude da não realização de atividades presenciais na maior parte do país, não vai seguir o mesmo entendimento, desconsiderando que a redução de gastos foi atípica. Ou seja, nos deparamos agora em 2021 e provavelmente nos anos seguintes com a saúde voltando aos patamares de investimento de 2019, desconsiderando as necessidades ainda da pandemia, enquanto que para educação vale o orçamento enxuto de 2020. Em resumo, partem de um patamar atípico para medir os investimentos em educação, mas não partem do mesmo patamar atípico para os investimentos em saúde, simplesmente porque isso significaria ampliar investimentos. Na prática, se trata de distorcer a realidade para fazer caber no projeto de desmonte dos serviços públicos e sufocamento da capacidade de desenvolvimento científico brasileiro.
OTTS – Consta na pauta do congresso também a chamada reforma administrativa, que na prática ataca os servidores públicos, conforme entrevista que você recentemente deu ao programa “Intersindical Debate” (ver aqui). Quais as principais ameaças da reforma administrativa para os serviços públicos?
H.P – Primeiro, importante pontuar que a reforma administrativa é uma profunda transformação do Estado brasileiro e do seu papel de garantidor dos direitos sociais. É a tentativa de transformar o Estado em subsidiário à iniciativa privada e nesse sentido, para além de ameaçar direitos dos servidores públicos, significa uma ameaça à população usuária dos serviços públicos.
Mas, especificamente para os servidores públicos, podemos falar no ataque à carreira quando a reforma administrativa pretende vedar progressões e licenças por tempo de serviço, ou quando coloca a demissão “por baixo desempenho” e ameaça a estabilidade. E isso, diferente do que o Governo e o relator da PEC 32 divulgam, atinge todos os servidores e servidoras públicas, inclusive quem já está atuando no serviço público. Outro ponto diz respeito às modalidades de contratação, deixando o concurso público em segundo plano e substituindo por contratações através de processo seletivo simplificado, em caráter temporário e sem vínculo com o serviço público. Essa ampliação da rotatividade cria prejuízos aos próprios trabalhadores e trabalhadoras ao rebaixar remuneração e impedir o vínculo desse profissional com o local de trabalho, gerando dano à população usuária e, inclusive, aos recursos públicos. Quanto mais rotatividade, mais despesas o Estado brasileiro vai gerar com treinamento e seleção de profissionais, que conhecendo com menor profundidade o espaço onde atuam, possivelmente entregarão um serviço público de menos qualidade aos usuários.
OTTS – Um desafio que se coloca na luta sindical e que o OTTS tem chamado a atenção é o desafio da organização sindical dos terceirizados. Na pesquisa que fizemos com dirigentes da Intersindical foi possível constatar que o SindSaúde SC tem o desejo de organizar os trabalhadores terceirizados, inclusive com previsão estatutária, no entanto esbarra no fato dos vários sindicatos dos terceirizados em SC serem atuantes. Mesmo neste cenário, você consegue vislumbrar formas de aproximar o SindSaúde SC dos trabalhadores terceirizados ou mesmo destes sindicatos? Se sim, quais seriam?
H.P – A realidade é que esse modelo de sindicato que nos acostumamos a reconhecer, de categoria e pautado sobre os empregados formais, hoje não representa mais a maioria da classe trabalhadora brasileira. Temos uma parcela imensa dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiras em trabalhos informais e/ou precários, e mesmo a parcela que permanece na formalidade tem apresentado índices de sindicalização cada vez menores, especialmente após a reforma trabalhista de 2017. Embora esse afastamento da classe dos seus sindicatos tradicionais não seja algo que possa ser visto apenas pela aparência dos fatos, não se pode deixar de considerar que isso está acontecendo tanto nas categorias de trabalhadores da iniciativa privada quanto de servidores públicos e que é preciso identificar os fatores que estão levando a isso.
O desafio é encontrar alternativas e formas de organização que ultrapassem as barreiras do sindicalismo de Estado e que se pautem pelos interesses da classe trabalhadora, não apenas de determinada categoria. Associações de caráter sindical têm cumprido esse papel em alguns espaços e podem ser alternativas para garantir a representação e articulação conjunta de diversas “categorias” que atuam num mesmo local de trabalho. Se usarmos a saúde como exemplo, temos profissionais representados pelo sindicato de trabalhadores da saúde, mas temos no mesmo local de trabalho profissionais de vigilância que estão em outro sindicato, pessoal de higienização em mais outro, pessoal de cozinha em outro ainda, sem falar na situação de sindicatos de profissão que se poderia citar mais uma dezena… Na prática, essa fragmentação acaba criando uma série de empecilhos para construção conjunta de mobilizações e dificultando o avanço nas pautas comuns dos trabalhadores. É preciso construir alternativas que representem esse conjunto.
OTTS – Helô, o que você falaria mais sobre a terceirização? E sobre o desafio de organização dos trabalhadores terceirizados? Você teria sugestões para dar ao OTTS em termos de direcionamento do trabalho com os terceirizados?
H.P – Resumidamente, é preciso repensar e reconstruir a nossa compreensão do papel dos sindicatos hoje. Sindicato e movimento sindical que se pautam exclusivamente pelas pautas imediatas da categoria, não servem à transformação da realidade e ao enfrentamento da conjuntura. Obviamente que isso não significa abandonar as pautas imediatas das categorias e só intervir no macro, inclusive porque quem não consegue reunir forças para intervir no imediato, em geral não vai ter condições de intervir em algo muito mais amplo. É nesse sentido que entidades de caráter sindical precisam surgir e dar conta de organizar trabalhadores que estão desorganizados hoje. Se não é possível trazer os terceirizados para dentro dos sindicatos tradicionais, pode-se buscar organizar associações desses trabalhadores de acordo com seus espaços de atuação.
OTTS – Temos acompanhado também um processo de perseguição do governo do Estado ao SindSaúde SC, que está levando a leilão a sede do Sindicato. Como as entidades e organizações em geral podem se manifestar contra este absurdo ?
H.P – É uma situação absurda, de perseguição e de falta de reconhecimento dos esforços e sacrifícios que os profissionais de saúde têm feito, especialmente nesse período da pandemia. No pior momento possível, o Governo do Estado, hoje sob comando de Daniela Reinehr (apoiadora e apoiada por Bolsonaro) pediu e a Justiça determinou o leilão da sede como punição por uma greve realizada em 1996, há mais de 25 anos. Frisa-se que havia, naquela época, acordo de encerramento de greve que incluía a retirada do processo, coisa que foi descumprida sistematicamente pela Procuradoria Geral do Estado e pelos governos que se sucederam desde então. Vale ressaltar que o prédio do sindicato está localizado em uma região com grande interesse no mercado imobiliário e o leilão do imóvel parece pretender beneficiar as construtoras às custas dos profissionais de saúde e da saúde dos catarinenses.
Temos pressionado por abertura de mesa de negociação e pelo cumprimento por parte do Governo do acordo de greve. Nesta última semana estivemos reunidos com a Secretária de Estado da Saúde e há as tentativas de audiência com a PGE e com a própria Governadora. Uma carta com centenas de assinaturas de entidades pelo país afora foi remetida no início de abril ao Governo, que até agora tem feito ouvidos moucos. Essa solidariedade de centenas de entidades é uma forma de buscar pressionar o Governo pela abertura de negociação que possa evitar que o leilão seja efetivado.
É inadmissível que o governo se aproveite do momento em que a atenção dos profissionais de saúde está voltada a atender as demandas da população, no trabalho incansável dentro de cada unidade de saúde para atacar a categoria e o patrimônio histórico desses profissionais.
Para adesões de apoio das entidades, acesse aqui