Por Edson Índio*
O governo Lula enviou ao Congresso Nacional o Projeto de Lei Complementar (PLC) 12/2024 cujo texto foi acordado entre representações de motoristas de aplicativos, proprietários das plataformas e do governo federal.
O projeto suscita debates, incertezas e incompreensões na categoria, no movimento social, na imprensa, nos operadores do direitos, na academia e nos dois lados do espectro político.
Participei da etapa de debates no âmbito do GT Tripartite criado pelo governo em 2023 compondo a bancada dos trabalhadores e me arrisco aqui, em algumas linhas, a apontar preliminarmente e em caráter pessoal, aspectos que julgo relevantes para compreensão do que está em jogo do ponto de vista de quem se orienta pela garantia de direitos a mais de 700 mil pessoas que trabalham como motoristas de aplicativos, objetos do PLC 12, que vai influenciar na luta para efetivar direitos aos demais setores plataformizados – mais de um milhão de pessoas cujo trabalho é mediado por plataformas, principalmente entregadores de moto e bike, mas também para uma parcela cada vez mais crescente que já faz uso dessas plataformas para acessar uma ocupação remunerada em diversas atividades econômicas.
Como o PLC 12 versa apenas sobre motoristas, vamos às questões fundamentais que a meu ver impactaram até agora o resultado desse processo.
O primeiro aspecto é a posição que prevalece no STF e no Congresso Nacional quanto ao arcabouço jurídico que o Brasil deve ter a fim de garantir – ou não – a efetivação de direitos, que mesmo sendo estabelecidos na Constituição de 1988 são burlados pelas empresas de aplicativos de transportes de passageiros, como Uber e 99.
Ao longo de quase uma década de contínua supressão de direitos, como na legalização da terceirização irrestrita ou na reforma da legislação trabalhista e previdenciária, o que se verificou nesses dois poderes é a prevalência de uma sanha ultraliberal de desmonte de garantias trabalhistas a fim de facilitar os negócios e lucros do grande capital através da redução, ao limite, do valor da força de trabalho e também da força política da classe trabalhadora brasileira em seu conjunto.
Enquanto parcela da justiça do trabalho segue reconhecendo a burla promovida por empresas nas relações de trabalho, a exemplo das inúmeras decisões do TST sobre vínculo trabalhista aos motoristas, o STF aponta que vai derrubar todas as decisões que reconhecem direitos aos trabalhadores, ao dar repercussão geral e, portanto, vincular todas as decisões da justiça do trabalho às decisões regressivas e precarizantes do Supremo. Ao decidir pela repercussão geral, o STF botou uma faca no pescoço das trabalhadoras e trabalhadores que recorrem à justiça do trabalho para fazer valer os direitos negados cotidianamente por essas plataformas. Se no combate ao golpe bolsonarista o STF tem exercido papel esperado de uma instituição democrática, nas questões econômicas, em particular nas relações de trabalho, a maioria do STF se coloca de costas aos princípios constitucionais da valorização social do trabalho, da dignidade humana e do princípio do não retrocesso social.
A posição que prevalece no Congresso Nacional não é segredo para ninguém. A maioria das duas casas se sente muito à vontade para defender os interesses bilionários das empresas de aplicativos, independentemente do que isso possa significar para milhões de pessoas que recorrem ao trabalho árduo junto às plataformas para auferir alguma renda.
Por outro lado, um aspecto muito importante, decisivo a meu ver, que se colocou como obstáculo ao avanço da regulação no âmbito do GT Tripartite diz respeito à ampla diversidade de opiniões e percepções existentes no interior da categoria de motoristas de aplicativos. Até pelo fato de ser uma “categoria” recente, “formada” no auge da propaganda antisindical e do desmonte da legislação trabalhista, com razoável aderência das fakenews bolsonaristas e da pregação das hostes ultraliberais, esperar uma adesão consciente e em massa à defesa da CLT, da organização sindical e de uma regulamentação que estabeleça limites ao vale-tudo empresarial seria esperar demais, infelizmente.
Para reverter esse quadro de divisão e profunda dispersão ainda será necessário muito trabalho de esclarecimentos e conscientização, debates e, principalmente, muita mobilização de ao menos a parcela mais consciente de motoristas, o que vale também vale para entregadores.
Essa ausência de unidade mínima entre os motoristas acabou por ser agravada pela necessidade do GT estabelecer uma remuneração mínima, medida importantíssima inclusive para a definição das alíquotas de contribuição ao INSS, mas pelo fato de a maioria já receber uma remuneração maior acabou por gerar desconfianças descabidas no setor quanto aos objetivos do GT.
Se existe um ponto em que a maioria da categoria concorda é que o valor que recebem hoje pelo trabalho realizado está muito defasado, muito abaixo do que precisam para cobrir os custos e sobrar algum para levar pra mesa dos filhos.
Na verdade, independente da regulamentação ou não, os motoristas precisam de reajuste salarial urgente e isso não é possível arrancar numa mesa de negociação tripartite sem pressão organizada dos trabalhadores, inclusive com greve. Mesmo quem não tem experiência em negociação sindical consegue perceber a dificuldade de convencer uma pessoa que está no vermelho, cujo ganho mal dá para bancar os custos com o carro, a apoiar uma luta para estabelecer um patamar mínimo abaixo do que já recebem, ainda estabelecer o piso seja muito útil, inclusive como referência para a contribuição ao INSS.
Ademais, se existem variadas e divergentes opiniões sobre CLT, vínculo trabalhista, papel do sindicato, do Estado ou sobre a autonomia relativa que têm os trabalhadores na definição da sua jornada de trabalho – e completa falta de autonomia na definição da remuneração – a direita e o bolsonarismo se aproveitaram para propagar confusão e fakenews. Apesar das canalhices ditas pelo bolsonarismo, muitos dos celerados perceberam qual é a principal mudança contida no PLC 12: vai ter sindicato e negociação coletiva, o que provoca urticária na laia do Bozo.
A despeito das controvérsias, o PLC 12 contém aspectos muito positivos que devem ser defendidos pelos trabalhadores e suas organizações. Até agora, as empresas nunca admitiram que exista uma relação de trabalho entre elas e os motoristas. Segundo a Uber, o que existe é uma relação comercial, cível, entre a plataforma e o dono (ou locatário) de veículo que aceita uma corrida solicitada por um terceiro, o cliente.
Com o PLC 12, a relação realmente existente é reconhecida como relação de trabalho. Dessa definição vai derivar uma série de consequências, como atuação e fiscalização do Estado (MTE, MPT), organização sindical, negociação coletiva.
Alguém duvida da força de uma greve minimamente unitária desse setor? Eu não tenho dúvidas de que com organização e luta coletiva a categoria de motoristas de aplicativos será capaz de vergar a intransigência patronal e fazer valer seus direitos.
A principal conquista imediata do PLC 12 é a garantia de acesso à proteção previdenciária com alíquota reduzida de 7,5% paga pelo trabalhador apenas sobre um quarto da remuneração mínima, enquanto as empresas terão de contribuir com 20% para a proteção básica garantida pelo INSS. Se adoecer, mesmo sendo considerado um autônomo, o trabalhador terá direito ao auxílio-doença, por exemplo, muito diferente do que vigora atualmente: quando o motorista fica doente, fica sem nenhum rendimento.
Também é um importante avanço a definição de que 3/4 do rendimento será a título de reembolso ou indenização pelos custos com gasolina, pneus, depreciação do carro, ipva e demais gastos do trabalhador na realização do trabalho. Outras questões não menos importantes como acesso do trabalhador à informações, transparência dos dados, limites à exclusão do trabalhador do aplicativo e criação de cadastro único com todas as pessoas que trabalham para essas plataformas, permitirão acompanhamento e fiscalização dos instrumentos públicos de regulação (Estado, sindicatos etc).
Se o texto do PLC 12 contém conquistas importantes a serem defendidas pelos trabalhadores, é importante atentar para sua tramitação no Congresso Nacional, pois o bolsonarismo e a direita liberal podem tentar desidratar as conquistas e avanços, principalmente no que diz respeito à organização sindical e negociação coletiva. Por outro lado, ao reconhecer avanços, não me coloco no rol daqueles que vêem o projeto como a oitava maravilha do mundo, pois não é autônomo quem não têm autonomia para definir sua remuneração nem domínio sobre a programação dos algoritmos das plataformas. Outro elemento que não avançou é o fato de as empresas se recusarem a pagar por todo o tempo em que o trabalhador fica logado à disposição dos APPs, remunerando apenas o período em que o motorista estiver no deslocamento da viagem solicitada.
Mas se é verdade que o projeto não é a oitava maravilha do mundo – a relação de forças no Congresso e no judiciário e na própria sociedade não permite – o PLC poderá se constituir num grande avanço para que no futuro próximo, com muito trabalho de esclarecimentos, convencimento e conscientização essa categoria não apenas possa avançar na consolidação de todos os direitos estabelecidos pela Constituição de 1988, como pode contribuir com a luta da classe trabalhadora em seu conjunto ao edificar sua organização, saindo quase que do zero. Estou convencido de que se os trabalhadores plataformizados tomarem consciência coletiva de sua força, e forjarem sua organização, poderão atualizar e dirigir a luta sindical no Brasil do próximo período.
*Edson Carneiro Índio, dirigente da Intersindical Central da Classe Trabalhadora.