Depois de motoristas, entregadores, faxineiros e garçons, agora é a vez de estoquistas e repositores de mercadorias usarem aplicativos para conseguir “bicos”, sem direitos trabalhistas, em supermercados de todo o país.
Prometendo gerar renda para trabalhadores e reduzir o custo da folha salarial para varejistas, plataformas como Helppi, iWof e Switch afirmam fazer uma mera intermediação entre as partes, sem vínculo empregatício nos moldes da CLT (Consolidação das Leis do Trabalho).
Após preencher um cadastro e passar por um treinamento online, o profissional se candidata para tarefas anunciadas no aplicativo pelos supermercados — o Grupo Pão de Açúcar (GPA), quinta maior rede do Brasil, é um exemplo. Uma vez aceito, pode fazer jornadas de até doze horas por cerca de R$ 140, sem vale-transporte nem auxílio-alimentação, e com uniforme pago pelo próprio trabalhador.
A atuação dessas plataformas, no entanto, está na mira do MPT (Ministério Público do
Trabalho). No fim de março, o órgão entrou com uma ação civil pública contra a Switch,
sediada na capital do Espírito Santo.
Segundo o órgão federal, o app funciona na prática como uma terceirizadora de mão de
obra e os trabalhadores não podem ser considerados autônomos. O MPT pede que a
Switch pague uma indenização por danos morais coletivos de 10% de seu faturamento e
siga a legislação federal 6.019/1974, alterada em 2017 para regulamentar a prestação de
serviços temporários e terceirizados.
A ação cita como possibilidade de contratação o regime “intermitente”. Criado pela reforma
trabalhista do governo Michel Temer por demanda de bares, restaurantes e varejistas, o
formato prevê o pagamento de direitos, como férias, 13º salário e contribuição
previdenciária, de forma proporcional aos dias em atividade.
O setor supermercadista é um dos principais geradores de emprego formal do Brasil, com
cerca de 9 milhões de postos. A expansão do modelo de aplicativos sobre o segmento
acontece no momento em que as práticas chamadas de “pejotização” e “uberização” são
temas de debates acalorados no STF (Supremo Tribunal Federal).
Autoridades trabalhistas temem que a tendência do STF de autorizar qualquer contratação
alternativa à CLT, incluindo aquelas já consideradas fraudulentas pela Justiça Trabalhista,
transmita a impressão de que a legislação trabalhista se tornou “opcional” para
empregadores. O não recolhimento da contribuição ao INSS (Instituto Nacional do Seguro
Social) também gera preocupação sobre o impacto bilionário ao caixa da Previdência.
“A jurisprudência do Supremo tem incentivado essa postura devoradora de contratos de
trabalho regulamentados”, afirma Silvana Abramo, desembargadora aposentada do
Tribunal Regional do Trabalho da 2a. Região e pesquisadora da Universidade de São
Paulo.
“Se tiver que pegar condução, não vale a pena”
A coluna conversou com repositores de mercadorias recrutados pela Helppi para atuar em
lojas da capital paulista do Grupo Pão de Açúcar — a quinta maior rede varejista do país,
segundo o ranking da Associação Brasileira de Supermercados (Abras), com faturamento
de R$ 20 bilhões.
Antes de começar a trabalhar, o candidato precisa passar por um treinamento online. Além
disso, tem de desembolsar R$ 70 para comprar uma camiseta e uma bota. Uma das
entrevistadas contou que a plataforma reteve o primeiro pagamento para quitar a despesa
do uniforme. Por uma jornada de seis horas, o app oferece R$ 73,50 — os trabalhadores
não são informados sobre o valor da comissão paga pelo supermercado à plataforma.
Outra repositora relatou já ter emendado dois turnos seguidos em uma loja do Minuto Pão
de Açúcar, na zona sul de São Paulo, para receber cerca de R$ 140. “Não sei nem como
aguentei”, comentou.
Sem auxílio para alimentação, ela contou que consome comida trazida de casa ou compra
produtos diretamente no supermercado. Também afirmou buscar tarefas apenas em
unidades a uma distância máxima de 3 quilômetros, para que possa se locomover a pé.
“Se tiver que pegar condução, não vale a pena”, justificou.
O funcionamento da iWof e da Switch é bastante similar ao da Helppi. No caso da
segunda, os depoimentos colhidos pelo Ministério Público do Trabalho mostram que os
trabalhadores recebiam cerca de R$ 50 por turnos de cinco horas.
“A situação da Switch é ainda mais grave, pois autoriza às empresas contratantes dos
serviços favoritar determinado trabalhador, o que permite que uma mesma pessoa preste
serviços ao mesmo tomador sem limitação de prazo e sem qualquer vínculo empregatício”,
diz a ação.
Possibilidade de recusar trabalho não elimina vínculo empregatício, diz MPT
De acordo com o MPT, as pessoas que buscam ocupação por meio da Switch não são
realmente autônomas. “O fato de o obreiro poder escolher o horário em que trabalha ou de
aceitar o trabalho disponibilizado (assumindo os riscos da punição), não tem o condão de
tornar a prestação de serviço autônoma, especialmente quando sequer há liberdade de
escolher a roupa que vai utilizar, o valor do trabalho e o tempo de execução”, sustenta a
ação movida pelo órgão contra a plataforma.
O MPT argumenta que a empresa funciona como terceirizada e refuta o argumento de que
o aplicativo faz uma mera intermediação, sem vínculo empregatício. “O trabalho
intermitente ou descontínuo não descaracteriza a subordinação jurídica, podendo muito
3/5 bem conviver com a alternância de períodos de inatividade ou intervalos de não trabalho. A
lei vai ainda mais longe ao dizer que ‘a recusa da oferta [de trabalho] não descaracteriza a
subordinação para fins do contrato de trabalho intermitente'”, diz a ação.
A ex-desembargadora Silvana Abramo faz avaliação semelhante. “Quando se fala em
“liberdade”, é a liberdade do capital da empresa, porque ele se realiza sem absolutamente
nenhum ônus. O aplicativo não tem despesa de transporte, de recolhimentos
previdenciários, de uniformes, de alimentação, de nada”, avalia.
Ainda segundo Silvana, a legislação proíbe a cobrança de valores pelo fornecimento de
uniformes. Ela também chama atenção para a falta de proteção social a esses
trabalhadores. “Se um repositor de mercadoria cair da escada e quebrar um braço, de
quem é a responsabilidade? Ele está numa situação de limbo jurídico completo”, ilustra.
O que dizem os aplicativos e o Grupo Pão de Açúcar
Em nota enviada à coluna, o CEO da Helppi, Daniel Anderson, afirma que a empresa é,
“assim como acontece em outras plataformas, em diversos segmentos, uma
intermediadora de serviços”.
O posicionamento diz que “não existe a formação de vínculo trabalhista conosco,
tampouco com nossos clientes, na medida em que não estão presentes elementos
jurídicos necessários para que essa relação seja configurada”. O texto acrescenta ainda
que “os Helppers são livres para aceitarem os trabalhos que mais se encaixem aos seus
perfis e disponibilidade”.
Também em nota, a assessoria de imprensa do GPA afirma que, “de forma pontual,
algumas unidades do grupo recorrem a plataformas para apoiar a operação em períodos
específicos de maior demanda”.
Ainda segundo o posicionamento, a empresa “está apurando os fatos para avaliar
providências, em linha com os compromissos de boas práticas trabalhistas e de acordo
com a legislação vigente”.
Procurados, os apps iWof e Switch, e a Associação Brasileira de Supermercados não
retornaram até o fechamento desta reportagem. A matéria será atualizada se os
posicionamentos forem recebidos pela coluna.
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