“Meu sonho é ser registrada para dar segurança para mim e para minha filha. Trabalho todos os finais de semana, às vezes até durmo na estação. É tão longe que nem me dou o trabalho de voltar”, diz Jaqueline Gomes de Jesus, 35, que faz bicos como coordenadora de eventos em um bufê de crepe, desde os 13 anos, quando foi obrigada a sair da casa dos pais. Mulher, negra, moradora da periferia de São Paulo, já trabalhou como babá, cabeleireira, manicure e foi sócia do ex-marido em uma empresa na área de engenharia.
Jaqueline não conseguiu concluir os estudos e diz que seu maior desejo é ter carteira assinada para criar com mais tranquilidade a filha Maria Eduarda, 12.
A CLT (Consolidação das Leis do Trabalho) chega aos 80 anos neste 1º de Maio com desafios como a inclusão de mais profissionais no mercado de trabalho formal e a proteção a quem ocupa postos que surgiram com as novas tecnologias, como os aplicativos de transporte e de comida.
De cada 10 trabalhadores ocupados no país, 4 têm carteira assinada e 4 são informais, segundo levantamento do Ibre (Instituto Brasileiro de Economia), da FGV (Fundação Getulio Vargas) com base na Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios), do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Os demais se dividem entre autônomos donos do próprio negócio e servidores estatutários contratados por regimes próprios de prefeituras, estados ou da União.
Pesquisa da FGV com profissionais por conta própria ?incluindo autônomos com CNPJ e informais sem CNPJ? mostra ainda que 7 em cada 10 trabalhadores gostariam de ter carteira de trabalho. Esse número sobe para 9 a cada 10 quando se trata de informais, ou seja 90% gostariam de estar no regime celetista.
O desejo é ter mais segurança: salário fixo mensal e benefícios como plano de saúde e vale-alimentação que o emprego celetista pode trazer. Esse “sonho” não se realiza por diversos motivos, incluindo barreiras impostas por gênero, cor e raça e região do país ?Norte sofre mais que o Sul? e baixa escolaridade.
Meu sonho é ser registrada para dar uma segurança para mim e para minha filha
autônoma
Jaqueline casou-se aos 15 anos, quando engravidou de gêmeos. As crianças morreram três dias depois do parto. Na segunda gestação, a violência doméstica a fez perder o bebê. Aos 21 anos, separou-se e foi morar com o pai de sua filha, com quem rompeu há pouco mais de um ano, após seguidos anos de violência.
Sem auxílio, cria a filha sozinha, com os trabalhos informais. “As oportunidades não surgem para mim, por conta dos meus estudos. Eles vêm que sou uma pessoa apresentável, mas quando falo dos meus estudos, a oportunidade cai por água abaixo.”
Após dois anos, Maria Eduarda conseguiu vaga em um projeto social do bairro, para fazer curso profissionalizante e, no futuro, conseguir o tão sonhado emprego formal.
“A Duda é maravilhosa, tem uma maturidade que eu não tenho. Os estudos dela vêm primeiro lugar. Ela quer ser advogada, e, se for preciso, eu cato papelão para ela fazer a faculdade de direito”, diz.
AUTÔNOMA NUNCA PAGOU INSS E TEME NÃO PODER SE APOSENTAR
Cuidar dos filhos e da casa fez Carla da Silva Mecca Ischi, 47, deixar o mercado de trabalho aos 18 anos, após engravidar e se casar. Contratada como jovem aprendiz desde os 15, nunca teve carteira assinada.
Carla ficou 20 anos fora do mercado e, há dez, voltou a trabalhar, como autônoma, no cargo de presidente de uma associação de bairro em Artur Alvim, na zona leste da capital paulista.
“Sou autônoma, mas nunca paguei INSS. Acaba que a gente vai deixando isso para depois. Vai levando no dia a dia”, diz. Para ela, não ter contribuído com a Previdência será um empecilho na aposentadoria e é o que mais lhe preocupa. A renda da casa é provida pelo marido, de 50 anos.
Os filhos, de 15, 21, 26 e 29 estão todos “encaminhados”, como ela gosta de dizer, com empregos formais. “Sempre é bom você ter uma carteira assinada. Agora, na área que estou, se houver um convênio na qual eu puder ter uma carteira assinada é melhor para mim.”
PERÍODOS ENTRECORTADOS DE CARTEIRA ASSINADA IMPEDEM APOSENTADORIA
Proprietário de uma revenda de gás no extremo leste de São Paulo, Edimar Bezerra Lins, 57, encontrou no trabalho autônomo uma fonte de renda para sustentar a família há mais de 20 anos, quando deixou o mercado de trabalho formal.
Edimar conta que já fez de tudo um pouco, mas sempre por curtos períodos e com salário baixo. “Comecei a trabalhar com registro em carteira aos 13 anos, em 16 de outubro de 1979. Lembro até hoje. Mas já trabalhava na roça desde os 10. Fiz de tudo, engraxei sapato, fui segurança, trabalhei em escritório, restaurante.”
Natural de Pernambuco, o trabalho foi a única forma de se manter em São Paulo e a rotina o tirou da escola. “Ainda tentei estudar, mas era muito longe, eram duas horas para ir para o centro, onde eu trabalhava, e duas para voltar. E a escola ficava ainda mais longe; larguei. Ia jogar futebol.”
Edimar afirma que a falta de orientação sobre a importância de estudar ou de se manter nos empregos poderia ter feito a diferença. “Do meu primeiro emprego eu pedi para sair. Trabalhei por dois anos. Não tinha orientação, tinha gente só para criticar, nunca para ajudar. Do último, como vigilante, houve um corte e fui demitido. Recebi todos os direitos.”
Em 2001, montou uma banca em frente ao prédio onde morava, na qual vendia vários itens. “Era tipo um shopping; vendia gás, água, feijão, arroz, açúcar. Era o ‘Shopping do Edimar’. De lá para cá, foi tudo sem registro, e aí comecei a trabalhar com gás.”
O trabalhador chegou a formalizar um CNPJ, mas não consegue arcar com as contribuições previdenciárias com frequência, o que, para ele, é a parte mais difícil de se trabalhar por conta própria. Sua expectativa era se aposentar um pouco antes da idade mínima de 65 anos, já que começou a trabalhar tão cedo, mas não conseguirá.
“Se alguém me falasse assim: ‘no futuro você vai precisar’, eu teria ouvido. Se eu pudesse, tivesse um salário que desse para sobreviver, eu queria ser CLT sim. Preciso desses anos aí que estão faltando para me aposentar.”
Se alguém me falasse assim: ‘no futuro você vai precisar’, eu teria ouvido. Se eu pudesse, tivesse um salário que desse para sobreviver, eu queria ser CLT sim. Preciso desses anos aí que estão faltando para me aposentar.
autônomo
PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS É REGRA EM ALGUMAS PROFISSÕES
A arquiteta mineira Diandra Noemi Carneiro Rolon, 27, sabe que faz parte de uma profissão na qual os contratos de prestação de serviços autônomos se sobressaem. Desde que se formou na Universidade Federal de Minas Gerais nunca teve emprego com carteira assinada na área.
“Ser CLT ou não nem era uma questão que eu pensava muito. Eu fui entendendo mais para o final do curso de arquitetura que tinha essa questão da não-relação com a CLT”, afirma.
Diandra teve carteira assinada entre 18 e 20 anos, por curtos períodos, ao trabalhar no comércio como temporária. Segundo ela, uma das vantagens que muitos apontam para não ser celetista é a flexibilidade de horários, mas, para a arquiteta, ter hora para entrar e para sair não seria empecilho.
A profissional afirma que ganharia menos se tivesse sido contratada pela CLT, mas sente falta do que acredita ser a segurança da carteira assinada: garantia de salário mensal e, em caso de demissão, aviso-prévio, seguro-desemprego e acesso ao FGTS.
O arquiteto e fotógrafo José Henrique Alvarenga de Paiva, 26, morador de Belo Horizonte, em Minas Gerais, afirma ter tirado a carteira de trabalho para seu primeiro emprego, um estágio, mas diz que ela nunca foi assinada.
“Durante o curso [de arquitetura], a gente tinha que fazer estágio e, no meu primeiro estágio, por causa do sistema do escritório, era necessário que todo mundo tivesse carteira. Mas ela não foi assinada; fiz a carteira de trabalho porque precisava do número. Está branquinha, vazia”, conta.
Ciente de que escolheu duas profissões nas quais o trabalho autônomo de prestação de serviços prevalece, Paiva afirma que gostaria de ter uma experiência como celetista.
CLT É ‘PORTA ESTREITA’, DIZ ESPECIALISTA
Para Hélio Zylberstajn, professor sênior da USP (Universidade de São Paulo) e coordenador do Salariômetro, que acompanha o mercado de trabalho formal mês a mês, a CLT é uma “porta estreita”, que garante “generosos” direitos a quem consegue passar por ela.
“Quem consegue passar por essa porta tem muitos, interessantes e importantes direitos como férias, FGTS, 13º, aviso-prévio, adicionais de hora extra e proteção na demissão. O problema é que, ao mesmo tempo, representa uma visão de estado tremendamente envelhecida, um estado que toma conta do trabalhador, que é protegido como um coitado”, diz.
O sociólogo Clemente Ganz Lúcio, coordenador do Fórum das Centrais Sindicais, consultor sindical e ex-diretor técnico do Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos), afirma que a CLT representa um processo histórico e que, aos 80 anos, a legislação ainda está em formação, com desafios trazidos pelos trabalhos por aplicativo.
Para ele, há é um descompasso entre a intenção de proteção trabalhista, social e previdenciária da legislação de 80 anos e o modelo de crescimento econômico que se consolidou no Brasil.
“É uma proteção social que significa direitos como jornada, condições de trabalho, proteção sindical e proteção previdenciária, que não havia, mas que depende de um crescimento econômico robusto e sustentado no médio e longo prazo, se não você tem uma desproteção”, afirma.
Segundo ele, a prioridade no momento é tratar de questões relacionadas aos trabalhadores por aplicativo. “Precisamos de um processo permanente e contínuo de aprimoramento da legislação trabalhista, de forma mais intensa, porque as transformações que duravam décadas hoje estão acontecendo quase que diariamente com a tecnologia. Temos como prioridade olhar para apps de moto, entrega rápida e transporte de pessoas. Tem 1,7 milhão de trabalhadores que precisam de proteção.”
Fausto Augusto Junior, diretor técnico do Dieese, diz que, quando a CLT passou a valer após a consolidação de leis regulatórias do mercado de trabalho desde a década de 1930, o modelo de mercado de trabalho e concepção econômica que se tinha era para ser mais parecido com o europeu, o que mudou ao longo dos anos.
“Era um mercado de trabalho mais homogêneo, com base no setor industrial, que formalizaria os profissionais. Só que o Brasil não rumou para o que a gente assistiu na Europa e hoje vemos um mercado mais heterogêneo. Mas, se compararmos com a África do Sul, por exemplo, somos homogêneos. Lá, são 70% de informais”, diz.
Daniel Duque, pesquisador da área de Economia Aplicada do FGV Ibre, afirma que desde 2012 ?dados mais antigos disponíveis na Pnad, do IBGE? apontam para uma proporção de cerca de 44% de profissionais contratos via CLT ante cerca de 36% de informais, fazendo com que a taxa de formalizados e informais seja considerada igual quando se faz o arredondamento.
Duque explica que a CLT só teve alta prevalência sobre o mercado de trabalhadores informais na pandemia de Covid, em 2020, quando a maioria dos informais não pode exercer suas atividades e passou a receber benefícios do governo.
Para ele, a CLT precisa avançar para um modelo que acolha a todos. “Não acho que a CLT é ruim; é um tipo de contrato de trabalho que tem em qualquer economia moderna. O que não quer dizer que não haja uma necessidade de a gente rever algumas regras. O ideal seria tudo mundo estar meio-termo”, afirma.
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