Crises e horizontes do trabalho a partir da periferia – XVII Encontro da ABET

O Encontro da Associação Brasileira de Estudos do Trabalho ocorrerá em duas fases e de maneira virtual

A Associação Brasileira de Estudos do Trabalho realizará entre os dias 3 de agosto a 10 de setembro de 2021 de maneira virtual seu décimo sétimo encontro com o tema “Crises e horizontes do trabalho a partir da periferia”. O evento ocorrerá em duas fases, sendo uma denominada de fase “Esquenta ABET” e a outra fase “Semana do Encontro da ABET”.

O atual contexto em que nos encontramos é marcado pela sobreposição de crises que se combinam e correspondem. São crises de natureza sanitária, política, econômica e, em particular, do trabalho. Desde o início de 2016, crise econômica e política se conjugam levando os dados sobre desemprego ao patamar de dois dígitos. Segundo a PNAD-C, a taxa de desocupação no quarto trimestre de 2016 alcançou 12,0% (variação de 3,1% em relação ao mesmo período de 2015) e foi acompanhada pela elevação das taxas de subocupação e subutilização, que parte de 17,3% no quarto trimestre de 2015 para 22,2%, em 2016.  

A crise política que se instala no país desde as manifestações de junho de 2013 culmina no processo de destituição de Dilma Rousseff. Michel Temer passa a implementar uma agenda de reformas voltadas a ampliar a flexibilização de contratos de trabalho, a desregulamentação do trabalho, a fragilização dos sistemas públicos de emprego e de proteção dos trabalhadores e de responsabilização individual pelo desemprego. Afinadas com a agenda de ajuste fiscal, a Reforma Trabalhista representou, segundo Bridi, “um dos maiores retrocessos do sistema de proteção do trabalho” cujos efeitos foram imediatamente captados por Krein e Oliveira: aumento do desemprego, da informalidade e ilegalidade, bem como do contingente de trabalhadores por conta própria. A novas modalidades contratuais criaram a figura do intermitente, ampliaram a terceirização, que se tornou ampla e irrestrita, e instituíram o trabalhador autônomo exclusivo. Ademais, no governo Temer foi aprovada a Emenda 95, do Teto dos Gastos, impondo limites por um período de 20 anos aos gastos públicos, “com efeitos sobre a geração de emprego e renda, com a paralisação das obras públicas e de programas que favoreciam a criação de empregos e sua formalização” .

Ainda mais subordinados ao poder das empresas, os trabalhadores se defrontaram com um novo governo que institui, desde 2018, reformas trabalhistas a conta gotas, ampliando o discurso da austeridade, da necessidade adequar as reformas aos interesses do mercado, da atração de investimentos e de apagamento das conquistas trabalhistas. Simbólico neste sentido foi a extinção do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) representado na imagem icônica de desmontagem do letreiro no prédio que o abrigava Esplanada dos Ministérios em Brasília, imagem que foi escolhida para simbolizar o XVII Encontro Nacional da ABET. Além de simbólica, objetivamente a extinção do ministério fragiliza e coloca em risco importantes bases de dados e informações sobre trabalho no país.

A crise sanitária causada pela pandemia da Covid-19, doença resultante da infecção pelo vírus Sars-Cov-2, anunciada em março de 2020 pela Organização Mundial da Saúde, afetou de forma brutal a dinâmica do trabalho e, evidentemente, o cotidiano e a vida dos/as trabalhadores/as, em função da situação emergencial e da necessidade do isolamento social.

Na ausência de tratamentos com medicamentos cientificamente comprovados e sem perspectivas de imunização coletiva por meio de vacinação em curto e médio prazo, o comportamento social foi radicalmente alterado em 2020, com restrições à circulação de pessoas (lockdown) e redução da atividade econômica e produtiva.

A pandemia desencadeou a “mais nítida e profunda contração econômica da história do capitalismo” (Saad, 2020) e produziu, na maioria dos países europeus e desde o início de 2021 também nos Estados Unidos, uma inflexão, pois as respostas governamentais à crise resgatam o papel protetivo e social do Estado e das políticas públicas. Na contramão deste movimento de inflexão, o Brasil segue fiel às políticas orientadas pelo princípio da supremacia do mercado, da “austeridade fiscal”, do empreendedorismo, reforçando a estratégia de flexibilização das relações de trabalho e de retirada de direitos.

Não obstante as mudanças nas condições e relações de trabalho em escala global, em especial associadas à ampliação das tecnologias da informação e da comunicação, a pandemia escancara a centralidade do trabalho. Esta centralidade se manifesta por exemplo quando empresários protestam contra medidas protetivas de quarentena ou lockdown, reivindicando o “direito ao trabalho”.  Por sua vez, o trabalho nos serviços considerados essenciais adquire maior visibilidade em função de sua relevância, seja no combate direto à pandemia seja na garantia da circulação de bens e serviços de necessidade básica.

Mas ser “essencial” não representa, na prática, ser valorizado nem estar protegido. Diariamente expostos aos riscos de contaminação no exercício da atividade profissional e no transporte, trabalhadores/as dos setores essenciais também têm suas condições de trabalho precarizadas, suas jornadas estendidas e intensificadas, além de sofrerem assédio, violência e desrespeito, causando, entre outros, aumento de sofrimento psíquico, fadiga e Burnout – distúrbio psíquico resultante de exaustão extrema.  Embora se intensifique, nada disso é novo.

De fato, desde os anos de 1980, um conjunto de reformas, dentre elas aquelas que versam sobre a regulação do trabalho, tem estado em pauta em vários países. Após a crise de 2008, essa pauta ganha ainda mais força e vários países aprovam Reformas Trabalhistas. Trata-se de um tema que afeta diretamente parcela significativa dos trabalhadores no mundo.

O trabalho assalariado (objeto da regulação do direito do trabalho) é majoritário e tem crescido nas últimas décadas em todas as regiões do planeta, a  despeito do novo “adeus ao trabalho” – ideia força que, ao naturalizar o determinismo tecnológico, superestimar a forma dos contratos e negligenciar o conteúdo das relações sociais (FILGUEIRAS; CAVALCANTE, 2020), supõe que o trabalho industrial, em particular, bem como todo o trabalho assalariado, em geral, estaria em declínio diante do surgimento de novas formas de organização -, e apesar das alusões precipitadas em sentido contrário. As novas formas de emprego e trabalho, combinadas ou não com as novas tecnologias, mantem a relação subordinada do trabalho ao capital. O efeito político dessa ideia força é fluir as noções de “colaboração” e “parceria”, de empreendedorismo e, consequentemente, minar os sistemas protetivos, tal como a disputa que emerge no seio do #breque dos apps. O efeito principal é turvar, da experiência dos que trabalham, qualquer indício da desigual relação entre capital e trabalho.

As experiências reformistas internacionais não tiveram uma direção unívoca, embora houvesse claro predomínio do liberalismo econômico como base das proposições das reformas trabalhistas. Todavia, a forma como os governos vêm enfrentando as crises evidencia que o neoliberalismo se encontra “desguarnecido” (Saad, 2020). Os discursos em defesa da “austeridade fiscal” e sobre as limitações das políticas públicas foram, ainda que momentaneamente, substituídos, em inúmeros países, por pedidos por mais Estado e salvaguarda da iniciativa privada. Os sindicatos, que se encontravam fragilizados, intensificaram sua atuação durante a pandemia. Nos Estados Unidos e na Europa entidades sindicais reagiram à retração econômica e à elevação dos índices de contaminação entre trabalhadores/as essenciais, reivindicando equipamentos de proteção, manutenção de empregos e salários e direito à licença aos/às aos grupos de risco.  A pandemia expõe os trabalhadores da linha de frente e dos setores essenciais sobretudo, a mais altos riscos de contaminação, mas suscita dos sindicatos maior ativismo e reafirmação de sua função reivindicativa. 

Mas a devastação do trabalho e da própria vida das populações tem consequências particulares para as periferias. E é expressão das mudanças estruturais do capitalismo e das medidas governamentais, as quais não impedem demissões, têm implicado a redução da massa de rendimentos do trabalho, reforçam a primarização da atividade econômica, a desindustrialização do país, a desigualdade social e o retrocesso no plano dos direitos sociais.    

Contabilizando em janeiro de 2021 mais de 8,7milhões de casos e 215.243 mortes, o que significa 10,5% do número de mortos em todo o mundo quando sua população representa 2,7% da mundial, a grave crise sanitária brasileira é expressão das opções políticas e econômicas tomadas no país.

As Medidas Provisórias 936 e 927 de 2020 aprofundaram a lógica da Reforma Trabalhista de 2017, na medida em que ampliaram a liberdade das empresas no estabelecimento das regras das relações de trabalho. As medidas implementadas apenas mitigaram o aumento do desemprego e o recrudescimento das ocupações precárias no país, impactando seriamente nas condições de trabalho e reprodução da vida.

No momento em que escrevemos esta Apresentação, os/as trabalhadores/as se veem ainda mais desprotegidos com o fim do auxílio emergencial, embora partidos, centrais sindicais e entidades da sociedade civil reivindiquem sua manutenção e reacendam o debate em torno da renda básica de cidadania.

Nos países da periferia do capitalismo e entre os setores sociais mais vulneráveis, a pandemia encontrou economias fragilizadas pela crise global de 2008, e no caso brasileiro ainda mais deteriorada pela recessão dos anos de 2015 a 2017. Este cenário é recrudescido com a Reforma Trabalhista que, embora tenha prometido reduzir a informalidade, aumentar o emprego e fortalecer os sindicatos, desde então vem, como dissemos, contribuindo para produzir exatamente o contrário. Os sindicatos foram fragilizados, a informalidade e o desemprego aumentaram e houve um enfraquecimento das instituições reguladoras e protetivas do trabalho. Ademais os marcos da Constituição de 1988 vem sendo minados, em todos os planos. E para agravar a capacidade protetiva, o Brasil está sob o freio da Emenda constitucional que instituiu o teto dos gastos públicos, asfixiando o próprio SUS. Neste contexto, os efeitos do COVID19 foram fortemente sentidos nos mercados de trabalho, agravando o quadro de desestruturação e precarização.

Trabalhadores em serviços essenciais, do comércio, da produção e da indústria de alimentos, da saúde, bem como trabalhadores por conta própria, especialmente entregadores, motoristas, motoboys, passaram a enfrentar dificuldades deste a falta de equipamentos de proteção mínimos para o exercício profissional protegido até extensão da jornada. Como revela a pesquisa de Campos

“Os trabalhadores de serviços essenciais compreendem categorias muito distintas, desde profissionais altamente qualificados, nos serviços médicos e hospitalares, até trabalhadores com baixa escolaridade e cujas relações de trabalho tradicionalmente caracterizam-se pela precariedade, como no setor de limpeza, de entrega, trabalhadores de cemitérios e funerárias”.

A precarização já vinha se tornando cada vez mais visível e criticada pelas entidades sindicais nessas categorias, mas este processo se intensifica e acelera com a Reforma Trabalhista, agravando-se de forma dramática na pandemia, em função da maior exposição ao vírus, ao adoecimento e ao risco de morte.

O isolamento social alterou as condições de trabalho dos entregadores por aplicativo pois, com o aumento da concorrência, foi necessário trabalhar mais, ficar por períodos mais longos à disposição das empresas, recebendo valores menores. Pesquisa realizada por investigadores da REMIR/Cesit, em junho de 2020, mostrou que do total de entrevistados/as, 60,3% relataram queda na remuneração. A pesquisa também mostrou que a maioria dos entregadores não recebeu qualquer equipamento de proteção por parte das empresas. Trata-se de “colaboradores” que não tem seus vínculos de trabalho reconhecidos e, portanto, sem quaisquer direitos.  

Sob risco de contágio e morte, a ausência de direitos tornou-se um problema evidente. Neste sentido, a pandemia aumentou a percepção entre os entregadores sobre a urgência de sua atividade, os ritmos cada vez mais intensos, as decisões arbitrárias da empresa em relação a penalidades e valores práticos, bem como sobre a necessidade de direitos e melhorias nas condições de trabalho. O movimento do #breque dos apps resulta exatamente desta percepção sobre a exploração do trabalho e evidencia formas de resistência coletiva que se constroem na relação com este tipo de organização do trabalho, trazendo consigo dilemas e desafios do trabalho que envolvem as ações coletivas, as noções de autonomia, de direitos, de igualdade e liberdade.

A dinâmica produtiva e social só não foi mais afetada em função do trabalho em serviços essenciais e das tecnologias da informação e comunicação. O teletrabalho tornou-se uma modalidade alternativa para inúmeras categorias. Segundo Nota Técnica publicada pelo IPEA (2020), em maio de 2020, 84,4 milhões de pessoas estavam ocupadas no país, dentre as quais 22,5% se encontravam afastadas de suas atividades, mais de ¾ devido ao distanciamento social. Dentre os 65,4 milhões que continuaram ativas, 13,3% – 8,7 milhões em números absolutos – exerciam suas atividades de forma remota.

As pesquisas realizadas sobre teletrabalho durante a pandemia logo expuseram que o mesmo possibilitou o isolamento, mas também proveu meios de intensificação e extensão do tempo de trabalho, além de contar com um improviso produtivo, especialmente para as mulheres com filhos (Bridi at al, 2020). Ademais, o teletrabalho é uma modalidade restrita a um certo perfil de trabalhador/a e funções. A pesquisa desenvolvida por Bridi et al (2020) identificou que 93% dos trabalhadores tem nível superior completo, evidenciando que esta modalidade foi utilizada de acordo com desigualdades interseccionais que estruturam a sociedade brasileira. Segundo Bridi e Bohler, os cargos e funções colocados em teletrabalho são majoritariamente ocupados por trabalhadores/as pertencentes às camadas médias e médias superiores da população (Cf. Bridi & Bohler, 2020).

Destaca-se, sobretudo, os trabalhadores das TIC’s, bancários, funcionários públicos e professores. Neste último caso, explicitaram-se desigualdades de gênero tanto no exercício da profissão de uma maioria de mulheres quanto na ausência de políticas de cuidado das crianças no contexto da pandemia.

O trabalho das mulheres também sofreu mudanças profundas neste período. Segunda a pesquisa “Sem parar: o trabalho e a vida das mulheres na pandemia”, 55% das brasileiras passaram a cuidar de alguém; 41% daquelas que seguiram trabalhando neste período, com a manutenção dos salários, reportaram intensificação do trabalho. Do total das pesquisadas, 40,0% afirmou que a pandemia e o isolamento colocaram em risco o sustento da casa. A pesquisa também confirma que os efeitos da pandemia sobre o trabalho doméstico não remunerado são mais sentidos pelas mulheres negras do que brancas. Por fim, 8,4% das pesquisadas reportou alguma forma de violência neste período.

Segundo o IBGE, a diferença entre a taxa de desemprego entre brancos e pretos atingiu o pior nível desde 2012. Enquanto o índice para pretos está em 17,8% e para pardos, 15,4%, a taxa para brancos fica em 10,4%

As pesquisas sobre trabalho e gênero examinam as relações existentes entre exploração do trabalho, dominação e opressão das mulheres. A divisão sexual do trabalho constitui categoria sociológica central para compreender os dados acima e os fatos recorrentemente narrados durante o confinamento. A divisão sexual do trabalho institui uma desigualdade não apenas entre homens e mulheres no trabalho remunerado – mulheres, por exemplo, com menor remuneração, em menor proporção em postos e cargos hierarquicamente superiores -, mas também no trabalho não remunerado, desigualdade potencializada pelos cuidados acrescidos com filhos, parentes, tarefas escolares, maior interrupção das atividades produtivas etc.

O XVII Encontro Nacional da ABET – Crises e horizontes do trabalho a partir da periferia

A crise do trabalho não está, como anunciamos, apartada das demais crises. Por isso, além de buscar suas raízes, nexos e as relações entre elas, nosso Encontro também procura refletir sobre o futuro, os desafios e os horizontes de enfrentamento e superação deste cenário.

Que ações e programas políticos priorizar no curto e médio prazo visando ao enfrentamento das crises, em particular da crise do trabalho? Como enfrentar o cenário mais profundo de redução do emprego, da renda e das oportunidades de trabalho para todos e todas? Que bandeiras priorizar na luta pela igualdade? Como seguir dando visibilidade às desigualdades de gênero, raça e etnia presentes no mercado de trabalho? Como construir a crítica e horizontes do trabalho desde a periferia? Como chegar a definições que alcancem nossas especificidades e centralidade?

As discussões do XVII Encontro Nacional da ABET, que acontecerão em suas Conferências, Mesas redondas, Sessões Especiais e nos dezesseis Grupos Temáticos, tratarão dessas e de outras questões que mobilizam os/as pesquisadores/as do trabalho.

O Encontro de 2021 estimula, assim como os outros que o precederam, um debate inter e multidisciplinar, articulando as investigações das diversas áreas de pesquisa sobre trabalho ao tema geral: crises e aos horizontes do trabalho a partir da periferia.

Constituem temas a serem discutidos: crises; trabalho; emprego; renda; desigualdades econômico-sociais; educação e trabalho; saúde física e mental dos trabalhadores e trabalhadoras; direitos e sistemas protetivos dos/as trabalhadores/as; ações coletivas, movimento sindical e resistências;  divisão sexual do trabalho, gênero, raça, gerações e classe trabalhadora; reconfigurações do trabalho; identidades, cultura e subjetividade do trabalho; alternativas produtivas e econômica solidária; tecnologias, trabalho digital, teletrabalho e novas formas de gestão e controle do trabalho; instituições públicas do trabalho; mobilidade e desigualdades regionais e territoriais; trabalho análogo ao escravo; experiências históricas dos trabalhadores/as; horizontes, perspectivas da centralidade do trabalho.

O XVII Encontro Nacional da ABET inova na forma, ao realizar todas atividades de forma remota ao longo dos meses de agosto e setembro.

No mês de agosto ocorre o “Esquenta ABET” conjunto de Mesas-redondas programadas todas as terças-feiras: 3, 10, 17, 24 e 31/08.

Entre os dias 6 a 10 de setembro ocorre a “Semana do Encontro da ABET”, com Conferências, Sessões Especiais, reuniões dos Grupos Temáticos e atividades de natureza artística e cultural.

Fonte: ABET

Confira aqui a programação geral do XVII Encontro da ABET

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